quarta-feira, 22 de abril de 2020

Nós três e uma caminhada no asteroide B-612: O autismo, eu e você



Aproximadamente 1% da população mundial tem autismo (APA,2013). É bem verdade que esse número varia muito nos estudos. Há trabalhos que apontam que a cada 160 nascimentos, uma criança será diagnosticada com autismo (OPAS, 2018). Outros estudos dizem que essa frequência é bem maior. Não obstante, o fato é que, se a cada 100 pessoas que conhecemos, uma vive essa realidade, precisamos nos aprofundar mais a respeito, não concorda?

O autismo, visto por alguns como um transtorno, para outros como uma síndrome*, é um problema neuropsiquiátrico crônico que se manifesta de forma muito precoce. Em geral, precocemente já é possível identificar traços importantes, mas essa percepção se dará de forma distinta, de acordo com a gravidade do autismo e suas manifestações clínicas. Casos leves podem passar despercebidos até a vida adulta, ao passo que indivíduos graves podem ser percebidos pelos pais ou por profissionais ainda na primeira infância. Tal como as cores do arco-celeste, estamos falando do espectro autista: um amplo e variado leque de apresentações.  Refiro-me aqui a déficits na comunicação social e na interação social, além de padrões repetidos de comportamento, interesses ou atividades.

Muitos mitos permeiam o autismo: são todas crianças agressivas, que não falam, com deficiência intelectual e que não encontrarão um lugar social. É bem verdade que parte das pessoas autistas podem ter algumas dessas características, porém não se pode generalizar. LEMBREM: O AUTISMO É UM ESPECTRO que vai desde pessoas muito comprometidas (não falam, agressivas, com comportamentos motores repetitivos) até pessoas muito funcionais e intelectualmente avançadas (como um Asperger**).

Um desses mitos é a ideia de que o autismo está restrito à infância. Todavia, com o avanço da medicina e das diversas modalidades terapêuticas (fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, nutrição, musicoterapia, psicologia, psicopedagogia, etc.) muitas pessoas têm chegado a fase adulta e até a senescência. E, se adequadamente estimuladas, chegam muito bem, obrigado! São pessoas que têm muito a ensinar com seu jeito singular de ver o mundo (Temple Grandin***, por exemplo), mas que precisam ser abraçadas pela sociedade e inseridas no mercado de trabalho, por exemplo. É quando seus pais estarão ficando idosos ou falecendo que essas demandas precisarão ser refletidas pela parentela e pela comunidade em que estão inseridos.

Algumas vezes, na minha prática, já acompanhei famílias que ganham um autista: os pais faleceram e o parente mais próximo recebe judicialmente o dever de cuidar daquela pessoa. Ou escuto comentários de pessoas que não sabem lidar com comportamentos “diferentes” do habitual (manifestações comuns do autismo) na sua escola, na igreja, no supermercado... Precisamos considerar, porém, que não estamos falando de algo tão raro assim. E mais, estamos falando de seres humanos. Pessoas como nós, com as mesmas necessidades biológicas, psicológicas, sociais e espirituais. É preciso parar de negar que os autistas estão no nosso meio.

Sei que não é fácil sair do nosso mundo ou mudar a forma como aprendemos o que é “normal”. Não é fácil romper com certas tradições e aceitar o que é diferente. Eu sei. Mas podemos convidar outras pessoas e fazer do nosso asteroide B612 (me perdoe o Pequeno Príncipe!), nosso mundinho particular, um pouco mais habitado.


   *síndrome: em medicina, conjunto de sinais e sintomas; manifestação comum a várias categorias patológicas.
** Asperger: autista de alta funcionalidade, usualmente com dificuldade de interação social, mas com conhecimentos elevados em uma determinada área (ex.: cálculo).
*** Temple Grandin: autista norte-americana que possui doutorado e é professora em uma universidade. 





REFERÊNCIAS:

APA, 2013. Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais - DSM V.
OPAS, 2018. Disponível aqui
Trailer do filme Temple Grandin. Disponível aqui

Saint-Exupery A., 1943. O Pequeno Príncipe. Artes Gráficas (livro).




sábado, 18 de abril de 2020

No Need to Say goodbye - Ansiedade Generalizada, Insônia e Medicamentos







O estresse faz parte da vida e o cérebro sabe disso. Quando estamos diante de situações desafiadoras, novas, nosso organismo entra em estado de alerta. São os estados de luta-ou-fuga. É a ativação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, ou eixo HPA, produzindo cortisol e gerando toda uma cascata de resposta a esse inimigo diante de nós: seja ele real ou imaginário.

Como Bentinho, sem saber se havia sido realmente traído por Capitu¹, podemos entrar facilmente numa hiperativação desse eixo – mesmo que não exista um leão diante de nós. É o estresse crônico que leva aos estados de ansiedade abrangendo todas as esferas da vida humana. Chamamos de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG).

Preocupações excessivas em mais de uma área na vida; insônia; fadiga; sensações de “branco” na mente; nervos `”à flor da pele”: alguns desses sintomas de forma contínua por 6 meses em uma pessoa que não consegue mais funcionar (render) como antes indicam um possível TAG. São os estudos que estão fracassando ou o emprego que não está dando mais certo. Quem sabe aquele relacionamento que não está progredindo ou ainda uma indisponibilidade de fazer coisas novas? É a famosa da ansiedade atrapalhando tudo.

Uma das dificuldades citadas pelas pessoas com o TAG diz respeito a falta de sono. A insônia é um sintoma muito comum em boa parte da população. Não necessariamente se trata de um problema psiquiátrico e padrões de sono “leve”, próprios de cada pessoa, podem ser facilmente confundidos com outros transtornos. Mas em se tratando de qualquer tipo de insônia, uma boa higiene do sono se faz necessária: dormir quando estiver cansado, apagar as luzes cedo, evitar telas próximo ao dormir, não ingerir refeições hipercalóricas à noite e não fumar ou ingerir álcool são algumas dicas que ajudam.

Ainda na gama dos tratamentos não-farmacológicos, tanto o TAG quanto a insônia (sejam juntos ou separados) podem se beneficiar de uma boa psicoterapia. Existem técnicas específicas que podem auxiliar na ansiedade de uma forma geral – tanto buscando uma causa inconsciente para sua ansiedade estar tão elevada (psicodinâmica), quanto treinando o organismo a relaxar (cognitivo-comportamental) ou mesmo dando novos sentidos a vivências prévias desagradáveis (humanista-existencial). A atividade física também é um TRATAMENTO adjuvante aos demais. Ela libera BDNF, uma substância que auxilia na formação de novas conexões cerebrais, além de substâncias do prazer (serotonina) e endorfinas (que controlam a dor)².

E quando os remédios são necessários? Sempre que as medidas iniciais já comentadas não forem satisfatórias isoladamente ou ainda quando a intensidade do quadro for exacerbada. Vale ressaltar que os psicotrópicos, medicamentos usados para a mente, são de resposta individual. Assim sendo, não vale pegar emprestado ou usar sem receita médica. Atualmente, dispomos de uma plêiade de substâncias que podem ser utilizadas – umas mais arriscadas, outras mais leves. Converse com seu médico sobre as possibilidades terapêuticas e elaborem juntos um plano comum de manejo dos problemas ³.


Lembre, por fim, que a própria ansiedade é uma parceira importante em momentos certos. Se você tem TAG, insônia, ou qualquer outra coisa parecida, não há necessidade de dizer adeus a sua vida...



REFERÊNCIAS

1 – ASSIS, M. Dom Casmurro. Ed. Garnier (1899).
2 – MELLO, M.T. et al. (2005) O exercício físico e os aspectos psicobiológicos. Revista Brasileira de Medicina do Esporte. Disponível aqui.
3 – STWART, M. Medicina Centrada na Pessoa. 3ª edição. Artmed.

Fonte da imagem :  Blog da Saúde - Ministério da Saúde

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Família: um lugar de memórias








Grandes ou pequenas, simples ou rebuscadas, descomplicadas ou complexas. Independente do seu formato, a família, nosso berço, tem sim um peso na formação dos indivíduos. Podemos passar a vida lutando contra isso, ou resignados ao extremo quanto a nossa situação (e todas as posições possíveis no espectro descrito acima). Todavia, o lar onde somos criados tem um impacto decisivo na construção do nosso caráter e personalidade. São ecos que reverberam ao longo da caminhada. São as nossas mais tenras memórias afetivas...

Afetos são sentimentos, impactos emocionais imprescindíveis na nossa existência. A vida sem afetos é plana, sem sabor. Seja alegria, amor, raiva, ciúme e até mesmo a tristeza, esses temperos existenciais ajudam a coordenar nossa motivação e comportamento. Falo em auxílio, pois nossos afetos não determinam nossa existência (pelo menos não deveriam) – afinal, somos seres racionais!
Como já descreveria Jane Austen em “Razão e Sensibilidade”1, a balança entre razão e emoção vai ser uma constante outorgada em nossa mente. 

Diante disso, imagine, leitor, o peso dos primeiros afetos, das primeiras impressões em nosso cérebro. Aqueles que nossos pais e os que compõem nosso núcleo familiar vão imprimir em nossa mente... O cuidado que tivemos quando éramos bebês, as brincadeiras ao redor da mesa ou os erros e descompassos dos nossos genitores. Falo sim de mecanismos inconscientes, memórias reprimidas, coisas que talvez “esquecemos” – contudo estão lá, marcando e moldando nosso ser.

Pensar assim nos faz entender que a família, esse lugar de memórias, deve ser um refúgio. E como tal, deve ser preservado pela sociedade como um santuário, como um lugar protegido em que a liberdade, os afetos e a criatividade possam se desenvolver.

Se nossa família primitiva não foi um esconderijo seguro na nossa infância, que tal redefinir isso (dar novos sentidos) e encontrar na sua família atual esse espaço? Que tal DAR aos outros afeto, limites e segurança para tê-los de volta na forma de AMOR? Que tal perdoar, sublimar, elevar-se por meio da cura das emoções? Pois como diria o sábio Francisco de Assis, “é dando que se recebe”2. Tarefa fácil? Não. Mas sem esse tipo de aventura emocional, caminharíamos para uma vida insossa.

2 – Oração de São Francisco  

3- Trailer do filme Razão e Sensibilidade: 



quarta-feira, 1 de abril de 2020

Um olhar para memórias afetivas




Cheiros, sabores, toques, olhares ou sons... Vivências sensitivas que todos temos desde a mais precoce época de nossa existência. São nossos sentidos que captam esses estímulos ambientais e, por vias neurais, traduzem essas informações no córtex cerebral em experiências.

É inegável, contudo, que junto a um cheiro familiar ou a uma música da nossa infância sempre vem uma emoção... Mas por que nossa interpretação dos estímulos ambientais é atrelada às regiões do cérebro onde são gerados os sentimentos? A resposta para isso é muito clara: os sentidos geram lembranças – e lembranças afetivas.

Quando somos crianças e escutamos determinadas conversas de adulto ou quando sentimos o cheiro do café da nossa avó sendo coado num pano velho... Ou a primeira vez que vemos a chuva cair forte nas montanhas ou mesmo os respingos de uma neblina caindo na nossa pele (ao corrermos com nossos colegas pelas ruas da cidade),  temos memórias que ficarão vinculadas a essas experiências sensoriais. Cada vez que sentirmos o mesmo cheiro de café, ou a mesma neblina, zap! Um verdadeiro curto-circuito cerebral evocará aquela lembrança e a mesma emoção daquele momento prévio.

Fui muito bucólico, leitor, falando de montanhas e panos velhos? Verdade. Eis o problema: as crianças de hoje muitas vezes não estão construindo memórias afetivas positivas. Estamos vivendo uma verdadeira avalanche de estímulos sensoriais, mas vazios de significado positivo. São games, tablets, celulares com cores, sons e personagens tão surreais que nem Dali1 teria tanta criatividade. É uma verdadeira fuga da realidade, enquanto essa realidade (montanhas, panos velhos coando café e correr na chuva) tem tanto potencial curativo. A realidade é dura, sim, não obstante é maravilhosamente genuína, verdadeira. E a verdade sempre liberta nosso ser.

Precisamos pensar e pleitear por um universo onde as pessoas (crianças, adultos e idosos) possam construir boas memórias e bons afetos. Isso não é negar a tristeza, desconsiderar nossas dificuldades. É saber das nossas limitações, aprender com elas e viver o que é simples. Um mundo onde os adultos sejam livres e responsáveis, as crianças cuidadas e amadas e os idosos plenos.
Utópico? eu também acho. Mas seremos moral e eticamente indesculpáveis se não lutarmos por isso.


Nota:

Para saber mais sobre crianças com vivências positivas, sugiro a leitura de Heidi - A garota dos Alpes de Johanna Spyri. É um livro maravilhoso e que ensina muito sobre resiliência. 




Heidi: A Garota dos Alpes/Ciranda Cultural